INSPIRAÇÃO – O ROTEIRISTA COMO ARTISTA

PLAYTIME, 1967. dir. Jacques Tati

Este post é principalmente para roteiristas, porque me parecem especialmente vulneráveis às influências da era materialista em que vivemos. Mas possivelmente outros artistas vão conseguir transpor estas reflexões para suas realidades e o acharão interessante.

A técnica de um artista se constrói ao longo de anos de estudo, observação ativa e profunda compreensão não só de todos os aspectos, estilos e história da sua arte, mas também do mundo à sua volta. Suas habilidades técnicas serão desenvolvidas através de elementos aprendidos através de outros artistas, mas mais ainda através do constante processo de acertos e erros acumulados durante a prática (idealmente diária) do seu oficio.

Tenho a impressão de que na lógica atual de criação de roteiros no Brasil a técnica geralmente é considerada o fio condutor no desenvolvimento de um roteiro, um guia com uma série de elementos a serem seguidos. E de fato, se você seguir o passo-a-passo e conceitos expostos pelos Fields, McKees e tantos outros professores (ou até “gurus”!), conseguirá escrever um roteiro com personagens, falas e uma história. Até vai dar para produzir um filme baseado neste roteiro. Mas se você em algum grau se subordinou à técnica, ao invés de usá-la sob seu comando, feito um artista livre, dificilmente será uma obra inspirada.

As técnicas ensinadas e praticadas desta forma não são em si algo negativo, mas se a nossa busca como criadores não for muito maior e mais profunda que isso, se não tomamos posse da nossa arte, continuaremos sendo fãs e não jogadores (para parafrasear John Cage) – independente do número de créditos que acumulamos. Seremos apenas práticos e eficientes. É suficiente? No cinema brasileiro existe, julgando pela maioria de roteiros produzidos, uma certa disponibilidade de ficarmos satisfeitos com pouco, e minha impressão é que um dos motivos é que temos muito medo de nos declarar como artistas (seja para nós mesmos ou para outros).

O que um artista faz é alimentar o seu eu-criativo, ativamente e incessantemente, para depois expressar-se em uma síntese artística do mundo, alimentada por sua imaginação. Para um artista, a técnica não é um guia de atividades, mas algo que permite cada vez mais uma livre expressão da sua individualidade criativa. No caso do roteirista, esta expressão se dá através de histórias para cinema, no caso do poeta, poesias; do pintor, pinturas; do ator, personagens… mas antes de mais nada precisamos todos reconhecer que no fundo somos artistas, não meros seguidores de um caminho sugerido por outros.

Ao invés de nos levarmos a sério e nos responsabilizarmos pela alimentação da nossa imaginação (a cada dia, a cada mês, ano), nós nos contentamos com questões práticas na construção de um roteiro. Os resultados estão nas páginas de roteiros e nas telas do cinema nacional, roteiros talvez competentes num sentido field-mckeeiano e que aparentemente satisfazem nossos produtores, mas raramente inspirados ou com a voz pessoal e original de um artista. Não falo de experimentos inovadores de forma ou estilo, invenções de roda, falo de uma falta de voz pessoal dentro de um filme 100% straight. Toda voz de uma verdadeira criação artística é original. Pessoalmente, eu sinto muito falta, e eu me importo muito.

Ficaria feliz em receber os comentários ou ideias de quem leu até aqui. Talvez estas questões lhe tocam de alguma forma, e queria saber como. Depois quero escrever mais a respeito, mas por enquanto vou sugerir uma coleção de obras que pessoalmente acho inspiradoras. Afinal, uma das maneiras de alimentarmos a nossa imaginação e vida interior de artista é “tomar posse” de obras inspiradas. Todo fã aprecia filmes primorosos, mas só o jogador entende profundamente como suas histórias foram contadas, penetra os personagens, a visão e voz do roteirista, desvenda os toques de gênio, suas pequenas falhas. O que certamente vai requerer assistir diversas vezes o filme e ler/estudar diversas vezes seu roteiro sempre que possível, para que possamos receber um conhecimento não apenas intelectual ou acadêmico.

Na categoria INSPIRAÇÃO aqui no hugemess você vai encontrar filmes de todas as épocas desde os anos 1910 que merecem (re)estudo. Ouso afirmar que se você deixar, eles vão alimentar seu eu-artista.

A série INSPIRAÇÃO terá um post por dia. Vou tentar incluir links para quaisquer filmes que estão no YouTube etc. na íntegra. Em alguns casos é possível encontrar também o seu roteiro, o que recomendo muito.

[a foto acima é de PLAYTIME, de Jacques Tati. Eu não gostaria de ter que escolher meu filme favorito, mas Playtime seria um forte candidato. Portanto é um ótimo lugar para iniciar a série. Se você assumir seu papel de jogador, penetrar e entender o gesto artístico deste filme extraordinário, eu garanto que terá crescido como artista.]

4 respostas para “INSPIRAÇÃO – O ROTEIRISTA COMO ARTISTA”

  1. tô com ocê, e não abro, hugo. técnica ajuda, sem dúvida, mas sem o “olhar” pessoal do autor, o roteiro vira obra mecânica e não a sua “obra inspirada”.

  2. Fui aluno de Moss há alguns anos, no Leblon, e considero a técnica “master scenes” um caminho viável para um bom roteiro. De outro lado, estou de pleno acordo com Hugo no que diz respeito à importância de um roteirista ouvir sua voz interior – o guia, a sua verve artística e sua visão do mundo – somada à técnica aprendida.

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