O MISTÉRIO DE PIRAPORA


Cheguei no Brasil em 1987 com a missão de pesquisar um guia de turismo para uma editora londrina. O país havia sido dividido entre três pesquisadores e felizmente fiquei com Minas, Rio e Espírito Santo. Comecei por Minas, viajando de ônibus pelo o sudoeste do estado, subindo de Poças de Caldas e Alfenas em direção ao Triângulo Mineiro e, depois de algumas semanas, rumo ao norte via Patos de Minas e  Pirapora. Para um recém-chegado da Europa era tudo fascinante e muitas vezes misterioso, especialmente porque meu português estava só começando a engatinhar.

Algo que todo viajante leva consigo quando sai para o mundo é o anonimato: vai para lugares que ainda não conhece, mas o desconhecimento é mútuo, o que pode trazer um grande senso de liberdade. No meu caso, depois de três ou quatro semanas andando pelos cantos mais remotos do interior de Minas, o meu senso de anonimato era absoluto e eu estava curtindo bastante.

Mas em Pirapora aconteceu algo muito estranho. Ao desembarcar do ônibus fui andando até um hotel modesto onde fui recebido por um rapaz e decidi descansar um pouco no quarto. Quando saí para dar uma primeira volta na cidade, a noite estava caindo e o pôr do sol me chamou para a beira do majestoso Rio São Francisco.

Eu não era o único: lá encontrei pessoas se reunindo em volta de um campo aberto, onde estava começando uma cerimônia. Hoje sei que era uma gira de Candomblé ou de Umbanda, mas naquele momento era simplesmente um feliz acaso me deparar com um acontecimento inusitado neste cenário deslumbrante. Nada mais fascinante do que assistir a um ritual desconhecido, tentar desvendar os costumes, observar gestos, adivinhar significados, o papel de cada um, suas relações.

Esta foto que achei na internet mostra uma cerimônia em Pirapora muito semelhante à cena que estou descrevendo:

Fiquei um tempo entre as centenas de pessoas assistindo na lateral do campo, enquanto atrás de mim outros acompanhavam do alto de um muro. A cerimônia foi crescendo, com muito movimento e concentração, e sem perceber fui me perdendo nesta atmosfera desconhecida, na magia, nas roupas, danças, sons, cheiros, rituais, com o rio milenar fluindo no fundo.

Mas depois de um tempo, comecei a escutar uma voz atrás de mim, me chamando pelo sobrenome: “Ô Moss!” Congelei. Não era possível. Havia chegado em Pirapora há menos de três horas e falado com quase ninguém. Decidi que era algum engano e voltei para a cerimônia. Mas logo em seguida, de novo: “Ô Moss!”

A única pessoa em um raio de pelo menos 200km que sabia meu nome era o rapaz do hotel, mas não consegui imaginá-lo me chamando assim. “Ô Moss!” Tomei a coragem de me virar. Inicialmente não consegui ver quem era. “Ô Moss, Moss!” Agora consegui identificar um jovem, não o rapaz do hotel, chamando bem na minha direção: “Ô Moss!” Coloquei a mão no meu peito num gesto de “Você está falando comigo?” Mas o mistério continuou: embora evidentemente falando comigo, ele não se engajava com a minha reação. Era como se eu estivesse me tornado invisível.

O lugar e atmosfera eram tão novos, desconhecidos, tão preenchidos de mistério, parecia um sonho. A repetição do meu nome “Moss! Moss!”, o sentir-me invisível começou a me deixar um pouco perturbado, então resolvi sair e contornar o muro para achar o jovem, tentar entender o que estava acontecendo. Mas no tempo que levei para atravessar a multidão e fazer a volta, ele havia sumido.

Meio achando que eu ia acordar no hotel a qualquer momento, resolvi ir procurar algo para comer. Afastado do rio o mundo aparentemente estava normal, embora enquanto caminhava pelas ruas de Pirapora, os sons da cerimônia continuavam vibrando no meu ouvido e no corpo. Me senti quase elevado, acolhido de alguma forma dentro do meu anonimato, um pouco como se tivesse sido chamado ou tocado por uma presença maior.

Foi uma sensação que não me deixou nos dois dias em que fiquei na cidade, o tempo todo esperando ouvir “Ô Moss!” atrás de mim. Mas a voz havia se calado e levei o mistério comigo quando segui a minha viagem para Montes Claros e Januária, no extremo norte de Minas.

EPÍLOGO
Ao longo dos próximos meses fui aos poucos me familiarizando com o Brasil e meu português conseguiu se levantar e rapidamente aprendeu a andar. Acabei me estabelecendo no Rio de Janeiro e o “Mistério de Pirapora” caiu no esquecimento atrás de camadas e camadas de outros episódios e aventuras… até que um dia, anos depois, numa esquina em Botafogo, esperando atravessar no sinal, ouvi alguém atrás de mim chamando: “Ô moço! Ô moço!” Congelei. Não era possível. Me virei imediatamente e vi um atendente de lanchonete tentando chamar a atenção de um freguês distraído numa conversa. “Ô moço! Ô moço! Seu sanduíche tá pronto.”

Num instante, lá estava eu, de volta à beira do majestoso Rio São Francisco, vieram todos os cheiros e sensações daquele momento, e um largo sorriso abriu-se no meu rosto. Ri alto, generosas gargalhadas no meio da rua. A enigma de Pirapora estava desmistificado.

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